Este texto teve a leitura crítica e técnica da Dra. Daniela Ramos[1]
Quando li nas redes sociais que gatos não gostam de ser tocados, fiquei indignada. Porque os meus gatos adoram carinho.
Na verdade, um artigo elaborado por cientistas do Brasil, da Inglaterra e da Áustria, publicado em 2013, foi divulgado com interpretação errônea por alguns meios de comunicação do exterior, dizendo que gatos não gostam de ser tocados. Os textos com a interpretação equivocada foram traduzidos e publicados por alguns meios de comunicação do Brasil, perpetuando o erro.
A confusão gerou até uma nota de esclarecimento por parte da Universidade de Veterinária de Viena.
O artigo científico “Are cats (Felis catus) from multi-cat households more stressed? Evidence from assessment of fecal glucocorticoid metabolite analysis” analisou a concentração de metabólitos de glicocorticóides que são indicadores de estresse excretados pelos gatos em suas fezes. Também foram analisados questionários com informações sobre o temperamento dos gatos, respondidos pelos seus proprietários. A proposta era tentar entender se gatos que vivem em pequenos grupos são ou não mais estressados.
Como essa matéria ainda circula pelas redes sociais, eu achei interessante falar um pouco sobre isso.
O esclarecimento do Dr. Rupert Palm
Segundo a nota de esclarecimento[2], feita pelo coautor do estudo Dr. Rupert Palm, o objetivo da pesquisa foi entender se os gatos são mais estressados quando vivem em grupos ou se uma hierarquia rígida estabelecida nesses grupos diminui o estresse, mas nenhumas das hipóteses pôde ser confirmada pela análise. O número de gatos em uma casa não teve influência no nível de estresse dos animais. Na verdade, o estresse em gatos domésticos depende mais da socialização deles, da sua relação com os humanos, e dos recursos disponíveis, como espaço (horizontal e vertical) e acesso à comida.
Foram estudados 120 gatos de 60 residências de São Paulo. Os animais foram divididos em 3 categorias: casas com apenas 1 gato, casas com 2 gatos e casas com 3 ou 4 gatos. Os proprietários forneceram informações quanto ao temperamento dos animais, classificando-os como: mandões, tímidos ou tranquilos. Os proprietários também informaram quanto cada um dos gatos gostava de ser acariciado.
Segundo informações fornecidas por proprietários, 85 gatos “gostavam” de ser acariciados e apenas quatro gatos participantes do estudo foram reportados como “não gostando” de carinho. Ainda segundo os proprietários, 13 animais “toleravam” afagos e esses foram os que apresentaram as maiores concentrações de metabólitos de glicocorticóides, indicando que eram mais estressadas do que os outros. Segundo o Dr. Palme, teriam sido precisamente estes 13 gatos que levaram à má interpretação do estudo. Ainda segundo o veterinário, genericamente, os gatos não ficam de maneira alguma mais estressados quando são tocados. Isso depende muito mais das condições de vida e da personalidade de cada animal, sendo que a maioria dos gatos gosta de ser tocada.
Então, nós podemos acariciar os nossos gatos?
Como as pessoas de bom senso já intuíam, é claro que nós não só podemos como devemos acariciar os nossos gatos, desde que o felino demonstre apreciar o contato físico!
É mais provável que outros fatores na vida de alguns bichanos os tornem cronicamente estressados e, como efeito, eles podem ficar nervosos quando são tocados. O importante é analisar o contexto e a personalidade de cada animal.
O estudo ressalta que os tipos de personalidade e o comportamento dos animais também podem representar um importante papel na forma como o gato doméstico percebe o seu ambiente. Por exemplo, um gato tímido pode ter dificuldade de adaptar-se a um grupo, mas pode viver bem como sendo o único gato da residência. Por outro lado, gatos de personalidade flexível ou mandona podem não ter tanta dificuldade para viver em grupos.
Como se vê, os achados do artigo estão longe de afirmar que gatos não gostam de carinho.
Surgiram várias pérolas a partir da interpretação incorreta como o título: “Se você gosta do seu gato não o toque”, e a frase de encerramento de uma matéria: “então, qual a solução lógica se o seu gato te odeia? Compre mais gatos! Ou, simplesmente, troque-o por um cão. Você decide.”
Infelizmente, as duas frases perpetuam erros e podem contribuir para outros. Em um mundo cuja realidade está repleta de animais abandonados, morrendo por negligência, má informação, má fé ou pura má vontade, incomoda esse tipo de posicionamento.
A decisão lógica é ter bom senso.
Não, os gatos não nos odeiam, muito pelo contrário. Eles podem estar estressados por outros motivos ou apenas não gostar de toques em algumas partes do corpo. Ou porque têm alguma sensibilidade naquele local ou porque sofrem com alguma enfermidade que precisa de tratamento.
Quando percebermos alguma reação ao toque que nos pareça estranha, a primeira coisa a ser feita é procurar um veterinário para uma avaliação. Se o profissional concluir que não há nada de errado com a saúde do bichano, vale uma análise crítica da vida dele (e da nossa também, sem melindres):
- ele tem acesso fácil aos recursos básicos, como água, comida e abrigo?
- a localização desses recursos está apropriada (longe de barulhos, fácil acesso)
- há outros fatores de estresse (pessoas, animais ou crianças)?
- o gato tem atividade ou tem uma vida monótona?
- será que ele não está sendo tocado em um lugar do seu corpo especialmente sensível e não precisa de um pouquinho de respeito quanto a suas preferências pessoais?
Então, lembre-se: se você gosta do seu gato, não acredite em tudo o que se diz sobre gatos por aí.
Artigo consultado:
RAMOS, D.; RECHE-JUNIOR, A.; FRAGOSO, P.L.; PALME, R.; YANASSE, R.K.; GOUVÊA, V.R.; BECK, A.; MILLS, D.S.Physiology & Behavior. Are cats (Felis catus) from multi-cat households more stressed? Evidence from assessment of fecal glucocorticoid metabolite analysis. 122 (2013) 72-75
Sites pesquisados:
https://www.psychologytoday.com/blog/pets-and-their-people/201310/lol-cats-fight-back
http://news.nationalgeographic.com/news/2013/10/131020-cats-pet-stroking-stress-petting-animals/
[1] A Dra Daniela Ramos é a autora principal do artigo científico que deu origem a este texto. Médica-veterinária com mestrado em Comportamento Animal Aplicado pela Universidade de Lincoln/Inglaterra e doutorado em Clínica Veterinária pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é pós-doutoranda em Clínica Médica Veterinária (Comportamento Animal) na USP. Também é responsável pelo site de divulgação científica em Medicina Veterinária do Comportamento PSICOVET (www.psicovet.com.br)
[2] http://www.vetmeduni.ac.at/en/infoservice/presseinformation/press-releases-2013/press-release-10-
16-2013-cat-owners-can-carry-on-stroking-their-four-legged-friends/