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A Bella gosta de ser tocada, mas do jeito dela

O respeito à personalidade e às experiências individuais podem ser a melhor forma de desfrutar a convivência com um gato

Eu não me lembro do ano exato, mas foi entre 2003 e 2004. Eu fazia mestrado em Hospitalidade e me interessei em conhecer melhor um projeto, conduzido por uma Ong de Campinas/SP, que levava cães para interagir com idosos em asilos. Eu entrei em contato com a então Presidente e combinamos uma visita minha ao projeto.

Bella 3

Já a caminho, para acompanhar as visitas do sábado, ela me disse que estávamos indo buscar os cães no abrigo de gatos, porque era lá que eles moravam. Eu entrei em pânico ao me imaginar no meio de vários gatos abandonados, mas era muito tarde para desistir.

Ao passar pelos portões altos e fechados, logo percebi, ao lado da tela que separava a passagem de pessoas da entrada ao abrigo propriamente dito, uma gata frajola adulta, meio cabisbaixa e recém-chegada ao local.

Ela era menor, mas quase idêntica à Matilda, que havia acabado de entrar em remissão de um linfoma multricêntrico e tinha se tornado a rainha da casa.

O compromisso do dia foi cumprido e eu acabei voltando ao local outras vezes para visitar a bichana.

O romance durou alguns meses, até que eu criei coragem de dizer para o meu marido que queria adotá-la. Desnecessário dizer que o marido surtou e disse: não e pronto.

E eu desatei a chorar, imaginando aquele clone da minha amada morando em um abrigo. Quando o pobre homem cansou de ouvir os meus soluços, concordou que eu fosse buscá-la, com a condição de que ela viveria na nossa casa de campo em uma cidade próxima a Campinas.

Isso significaria que ela teria que morar sozinha, porque que moramos no ABC paulista. Achei que valeria a pena, já que ela teria comida boa, cuidados veterinários, carinho sempre que eu estivesse lá, a perspectiva de um dia morar conosco e, principalmente, camas só para ela, que não mais precisaria dividir um minúsculo espaço em cima de um colchão colocado no chão.

E lá fui eu buscar o meu objeto de desejo, mas a administradora do abrigo não queria que eu a pegasse, com medo de a gata fugir. Logo eu, que não permito que os meus gatos coloquem os bigodes perto da rua. Eu já tinha convencido o marido e não desistiria tão fácil. Acabei convencendo a mulher também.

Eu combinei com a faxineira para cuidar dela diariamente, batizei-a de Bella e, como já estava castrada, levei ao veterinário apenas para fazer um check-up e exames de FIV/FeLV que, felizmente, foram negativos.

A Bella revelou-se uma gata ávida por carinho, mas de pouquíssima paciência. Ela sempre me batia com as unhas à mostra quando percebia, não sei como, que eu estava para ir embora, ou se estivesse deitada ao meu lado e eu me mexesse de forma a desacomodá-la. E as coisas correram dessa forma durante três anos, até que nos mudamos para um apartamento maior e o marido, já envolvido pelo charme da intempestiva frajola, disse de livre e espontânea vontade para eu levá-la para casa.

Passaram-se aproximadamente sete anos desde então. A Bella, apesar de continuar sendo uma gata diferente da maioria e de não gostar de interação com os outros gatos, aproximou-se muito de nós, desde que sejamos obedientes: ela adora o nosso carinho, mas desde que feito exatamente onde, como, quando e pelo exato tempo que ela quiser.

Bella 4

Outra mudança que eu considero importante é que ela está mais tolerante ao toque nas patas. Antes, avançava ao mais leve contato em alguma das patas. Quando eu percebi isso, passei a insistir no toque, de forma gentil e gradual, e sempre me protegendo para não me machucar, caso ela reagisse. Achei importante esse procedimento porque, se algum dia eu precisar manipular alguma das suas patas, ela estará mais maleável para que isso aconteça.

Traiçoeira, diriam alguns participantes do time dos difamadores dos bichanos. Eu vejo de outra forma: é uma questão da personalidade e das experiências vividas por cada indivíduo (que, no caso da Bella, pode ter envolvido pouca socialização e até alguns traumas), e não impor a nossa vontade é uma forma de respeito, seja com o nosso semelhante, seja com qualquer animal.

Por exemplo, algumas pessoas adoram abraços, outras distribuem beijinhos sempre que cruzam com algum conhecido. Outras pessoas, por sua vez, evitam qualquer contato físico. Eu mesma gosto de abraços de pessoas queridas e, normalmente, dou beijinhos de cumprimento espontaneamente apenas em pessoas próximas.

Afinal, como dizem os defensores das individualidades, cada um é cada um.

A Bella gosta especialmente do meu marido. Todos os dias, pela manhã e à noite, enquanto espera a cachorra[1], que é idosa e deficiente física, comer, a Bella sobe no banco onde ele está sentado e mia insistentemente até que ele faça os carinhos que ela quer. Como já ele já está bem treinado, sabe a hora exata de parar.

A gorducha sempre nos brinda com impagáveis miados finos e deliciosas cabeçadas.

A nossa gata não é como a maioria, mas nós aprendemos a conhecê-la, a respeitá-la e a amamos como ela é: geniosa, impaciente e, por isso mesmo, muito divertida.

[1] Algumas semanas depois de eu escrever o texto, a cachorra faleceu e a novas sessões de carinho para a Bella estão em fase de adaptação.

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