Chega a parecer brincadeira de mau gosto que, em pleno século XXI, as diversas sociedades, inclusive as ditas desenvolvidas, ainda se comportem de maneira tão primitiva quanto aos animais. Um exemplo triste foi o anúncio pela Austrália de que pretende matar 2 milhões de gatos ferais até o ano de 2020.
O lado positivo do anúncio é expor a carnificina que a Austrália pratica contra animais há muitos anos, sempre sob uma justificativa aparentemente sólida e sensata.
No caso do abate dos gatos, a explicação oferecida é que eles estariam matando milhões de espécies nativas todos os anos. Seria ingênuo negar que os gatos caçam, mas é má fé tratá-los como culpados, desonesto e inútil matá-los ignorando as verdadeiras causas do problema: a falta de educação da população sobre posse responsável e a falta de enfoque na castração.
O que acontece por lá?
- Não há consenso sobre o número de gatos ferais existentes na Austrália, muito menos sobre a quantidade de animais que eles caçam, sendo que uma parcela dos animais caçados por eles diz respeito a outras espécies também não nativas, ainda mais prejudiciais ao meio ambiente local do que os próprios gatos.
- O país mata gatos há muito tempo, tanto em abrigos, por consequência direta do abandono, quanto ferais, a quem o anúncio se referiu, sem resultados práticos para a redução populacional.
- Os gatos ferais são origem de gatos abandonados pela população que, geração após geração sem contato humano, tornaram-se ferais. Portanto, sem educar e sem castrar, não existe controle.
- O método usado para intensificar a matança é o já praticado há muitos anos: envenenamento por iscas palatáveis, agora “melhoradas”. Essas iscas causam mortes horríveis e foram testadas em gatos de um abrigo destinado a “acolher” animais sem lar.
- Esses venenos também matam cães e gatos domiciliados, além de animais nativos e podem deixar rastros de contaminação no meio ambiente.
- Mesmo não tendo tido sucesso no extermínio de coelhos com um vírus criado para isso, está em curso o desenvolvimento de outro vírus para matar gatos que, certamente, não diferenciará ferais de domiciliados.
- Cientistas da própria Austrália, mesmo os partidários da matança, já comprovaram que não adianta matar gatos, porque, exceto em casos de pequenas ilhas longe da civilização, a erradicação não acontece, não importa quantos animais sejam mortos. Isso ocorre por causa do efeito vácuo: os gatos remanescentes continuam procriando, com crias mais numerosas e fortes, devido à maior disponibilidade de recursos decorrente da lacuna deixada pelos animais mortos. Além disso, gatos de outras colônias podem ver no vazio momentâneo uma oportunidade de se estabelecer. Assim, rapidamente os espaços provocados pela eliminação são preenchidos, e a população pode até superar a anterior.
- A grande causa do desequilíbrio da biodiversidade australiana é a perda de habitat provocada pelo crescimento urbano, em decorrência da seca, das áreas de agricultura, de pastagens e de mineração, entre outras, e o atual ministro do meio ambiente tem sido duramente atacado por não frear esse processo.
- A Austrália é conhecida por abater animais de forma sistemática no famoso “culling”. Eles já quase exterminaram os seus belos e nativos coalas no começo do século XX. Esses lindos bichos peludos foram levados à beira da extinção por caçadores que queriam a sua pele. Quando, finalmente o governo resolveu protegê-los, “esqueceu-se” de proteger os eucaliptos que lhes servem de abrigo e são a sua única fonte de comida. Com a forte onda de desmatamento em curso no país, as árvores estão sendo derrubadas deixando os coalas sem alimento. Quando isso acontece, como ocorreu no início deste ano, os animais ficam doentes e também acabam sendo abatidos.
- Milhões de cangurus, animais nativos, são mortos anualmente. A sua população parece resistir devido a boa oferta de alimento provocada pelas pastagens. Os seus defensores alegam que a espécie pode estar em perigo devido ao alto número de animais abatidos e pela acelerada perda de habitat. Mas há quem os considere pragas, movimentando a “indústria do canguru”. Frequentemente, esses animais sofrem com uma morte lenta e dolorosa. Cerca de 90 milhões de cangurus e wallabies (um marsupial da família dos cangurus) foram abatidos nos últimos 20 anos.
- A Austrália também já exterminou os dingos, o cachorro selvagem australiano, em diversas regiões do país. Embora considerado nativo, o animal passou a ser visto como praga porque atacava rebanhos. Nos locais em que os dingos foram dizimados, cresceram as populações de raposas, coelhos e gatos ferais, todos eles espécies não nativas e consideradas como pestes pelo governo e pelos conservacionistas. Agora reconhecem que foi um erro e o cão está sendo reintroduzido. Será exterminado novamente quando voltar a atacar animais criados por fazendeiros?
- Se não funciona, porque eles continuam matando? Os valores gastos em projetos de eliminação dos animais ditos invasivos e comentários de muitos australianos contrários à matança dão a entender que há (muito) dinheiro envolvido na perpetuação do processo. Shel Williamson, blogueira australiana e diretora do petrescue.com.au, por exemplo, escreveu um texto (http://www.savingpets.com.au/2014/10/how-animal-killers-hijacked-our-love-of-animals-and-took-our-money/) em que fala sobre a “indústria de proteção ambiental”: algumas empresas estão no negócio de desenvolver, produzir e disseminar os venenos destinados aos animais indesejados. Essas mesmas empresas e pessoas criam um novo problema, para ampliar o seu negócio. A bola da vez seria a eliminação dos gatos. No texto, Shel mostra relação entre os nomes de cientistas autores dos argumentos usados pelo governo como justificativa para o programa de abate dos gatos e os dos patrocinadores do documento em que os argumentos foram publicados, com a empresa já envolvida em outros projetos de “extermínio” e encarregada do novo trabalho. Seria o Drácula cuidando do banco de sangue (como escreveu um australiano ao seu ministro do meio ambiente)?
Enquanto em diversas sociedades cresce o número de gatos como animais de estimação, na Austrália ele está em declínio. As razões não estão claras, mas certamente a sua demonização pelo governo e pelos conservacionistas adeptos de matar animais tem a sua parcela de responsabilidade.
Para piorar, as cirurgias de castração são caras, muitos veterinários são contra a castração precoce, boa parte dos condomínios não aceitam animais incentivando a sua desova, parece não haver muito enfoque na posse responsável e pouco interesse de grande parte dos abrigos em mudar a realidade, uma vez que eles matam milhares de gatos anualmente, sendo quase metade deles filhotes.
Não há prática de CED (Captura-Esterilização-Devolução), a não ser por grupos isolados que, muitas vezes, agem escondidos, pois a lei entende a devolução como abandono.
O exemplo da Austrália não deve ser seguido por ninguém!
Já se falou por aqui em observar o caminho percorrido pela Austrália, eliminando gatos ferais. Realmente: devemos observá-lo e não percorrê-lo. Devemos aproveitar a lição sobre o que não fazer. Afinal, está claro que abater gatos não traz resultado algum e parece uma incógnita (ou não…) os motivos pelos quais insistem em fazer isso por lá.
No Brasil, o CED e a castração precoce de gatos, embora ainda em desenvolvimento, estão em estágios muito mais desenvolvidos do que na Austrália.
Precisamos entender que a polarização entre defensores de gatos e de outras vidas claramente não beneficia nenhuma das partes, já que todas elas sofrem pelas ações humanas e só o entendimento do todo poderá trazer resultados perenes para todas as espécies.
Então, em vez de aceitar mais um lixo vindo de países desenvolvidos, vamos dar suporte à educação para a posse responsável e para os grupos que beneficiam os animais carentes e os ferais com a castração.
Educar e castrar é a única solução.
Sites consultados:
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=957037724347453&id=430449423672955&comment_id=963894050328487¬if_t=share_comment
https://envirojustice.org.au/media/health-and-environment-groups-call-for-national-air-pollution-prevention-act-to-reverse
https://www.facebook.com/nathanwinograd/posts/1007687149255529:0
https://www.animallaw.info/intro/kangaroo-culling-australia
http://www.animalsaustralia.org/issues/kangaroo_shooting.php
http://www.animalliberation.org.au/kangaroo-culling/
http://www.bbc.com/news/world-australia-32879770
https://www.savethekoala.com/about-koalas/history-koalas
https://www.savethekoala.com/about-us/news-events/sa-government-koala-figures-incorrect-akf
https://www.savethekoala.com/about-koalas/koala-endangered-or-not
http://www.takepart.com/article/2015/03/04/700-koalas-are-killed-name-overpopulation?cmpid=tpanimals-eml-2015-03-07-koala
http://www.frasercoastchronicle.com.au/news/on-a-hiding-to-nothing/2714136/
http://m.theaustralian.com.au/national-affairs/state-politics/hundreds-of-victorian-koalas-killed-off-in-secret-cull/story-e6frgczx-1227247003919
http://www.australiangeographic.com.au/news/2014/03/dingo-culls-cause-more-harm-than-good
http://www.publish.csiro.au/?paper=WR14030
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https://www.academia.edu/12403561/Promoting_predators_and_compassionate_conservation
(https://theconversation.com/lets-give-feral-cats-their-citizenship-45165)